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Na Trilha do TEATRO

 

Existe sempre o momento exato para despertar – o que seremos, o que somos, o que pretendemos ser.

Jamais fiz uso da técnica de regressão, já que, este estado está sempre presente em mim, bem como, também nunca procurei saber quem eu fui em outra vida, no caso, em outro emaranhado DNA.

Estranhamente recordo dos momentos de minha vida sem fazer uso da cronologia do tempo, seja na sua contagem mais remota, seja na convencional contagem Romana, entre outras. Quem garante que ao escurecer é noite e quem pode afirmar que ao nascer do Sol é dia? O que é inteiro não se divide. A vida não se divide, a vida é vivida por inteiro.

Eu, no meu corpo indivisível, imensurável, recordo exatamente o dia que soube o que eu iria ser.

Naquele dia, um som como o pulsar do orgasmo chegou aos meus ouvidos. Gostei tanto que chorei e prometi a mim mesmo que escutaria aquela “sinfonia” para todo o sempre.

Recordo da luz que penetrava na sala, sem pedir licença, filtrada pela sombra de uma parreira repleta de cachos de uvas. Lembro exatamente das faces de todas as pessoas presentes, seus sorrisos, seus suspiros prazerosos.

Na sala, sentados em torno de uma mesa de formato oval as pessoas falavam sem notar os meus movimentos.

Recordo que não aceitei aquela falta de atenção aos meus suaves festejos de sons com a descoberta da minha própria voz. 

 

 

Fiquei revoltado, alguma coisa eu tinha que fazer para atrair a atenção daquele público desatento. Eu, nos meus quase nove meses, do que denominamos idade, não aceitei ficar aprisionado naquele espaço diminuto destinado às criancinhas. Com vigor, derrubei o quadrado que me aprisionava, me levantei e sai andando em direção à mesa.

Aí fui notado, aplaudido!

Os risos e as exclamações faziam cintilar os diversos pares de olhos que me admiravam nesse momento. Os aplausos eram tantos que quase não ouvia minha irmã Lectícia dizer: “Ele nem engatinhou e já está andando”.

Foi perfeito ganhei o público.

Naquela tarde quase escurecida, o toque do relógio de parede cumprindo o seu papel de controlador do tempo, bateu as seis badaladas que indicavam o crepúsculo. O rádio ligado tocava a Ave Maria e os sinos das igrejas badalaram completando os aplausos. Eu, que bobo nunca fui, também juntei as mãos e aplaudi a mim mesmo. Naquele momento soube exatamente o que queria ser quando crescesse.

 

Depois daquela minha primeira aparição pública na qual recebi os meus primeiros aplausos, tudo mudou, com o passar do tempo os ruídos das palmas ficaram mais distantes. Ninguém mais comentava, virei lugar comum. Cada dia mais comum até o silêncio total, nem mesmo o eco das palmas conseguia chegar ao meus ouvidos.

As jornadas ficaram cada vez mais longas, infinitamente longas, intermináveis. O tempo parecia não passar, ou pior, o tempo parecia que havia parado. Acredito que esse período durou mais de quatro anos. Digo isso porque a cada ano uma velinha a mais era acesa iluminando os dois bolos de festa. Sim, dois. É que eu e meu irmão Hanna nascemos no mesmo dia com enfadonha diferença de tempo. Eram dois bolos, mas a festa não era exatamente para mim porque eu apagava as velas a tarde e ele à noite O fato é que quando tudo ficava realmente animado eu era levado para a cama.

O tempo passava e logo depois arranjaram uma professora para mim. Ela vinha de segunda a sexta-feira e durante duas horas me ensinava a ler e a escrever. Na verdade, quando ela chegou eu já sabia ler, não muito bem mas sabia – aprendi com a minha irmã Sônia – nem sei por que ela resolveu me ensinar, sei que eu tinha de preencher um caderno chamado Letra Perfeita no qual estava escrito Caligrafia.

Depois que a professora ia embora eu não tinha mais nada para fazer, salvo andar em círculos, linhas retas, linhas curvas até mesmo rodopiar em formas côncavas e convexas. Saía pela porta da frente, percorria o muro do quintal – que ficava no limite do terreno da casa –  em um vai e vem que resultava em voltar pelos mesmos caminhos. Era uma busca incessante que não escapava do lugar nenhum.  Entrava em todos os quartos, todas as salas e em todos os recantos da casa. Ia e voltava...ia e voltava...Era um comportamento estranho, quase autista mas esta foi a forma que eu encontrei na tentativa de me fazer notar mas, o fato é que o resultado não foi o que eu esperava.

Enquanto eu andava pela casa a minha irmã Lactícia, levava horas e horas tocando piano. Os sons eram repetidos, inúmeras vezes repetidos. Depois que ela chegava da escola ia direto para sala de música. Três vezes por semana ia ao Instituto de Música, onde estudava. Um dia ela resolveu levar-me com ela. De início não entendi o motivo, mas logo depois percebi que era para eu cumprir a missão de aviãozinho. Lecticia me deu um bilhete e pediu para eu entregar a um rapaz que morava em um pequeno prédio na Rua da Mouraria. Daí em diante sempre que ela queria entregar algum bilhete me levava com ela, mas nem sempre o local da entrega era o mesmo e nem sempre o bilhete era entregue à mesma pessoa (?).

Ela pensava que eu não sabia o que era, mas eu sabia, no entanto, fingia não saber.

Acho que ela namorava vários ao mesmo tempo. Ela era considerada um símbolo de beleza e o desejo de todas as mães era ter uma filha que fosse a sua cópia. Digo isso porque sempre que nascia uma menina, filha um dos meus parentes diziam: “Parece com Lecticia”.

O universo feminino, aos olhos de todos, era todo parecido com Lecticia.

No arrasta daqui, arrasta dali, mais um ano, mais um aniversário no qual tudo se repetia e eu continuava sem ter direito a saborear o melhor da festa. Para completar as restrições que me eram impostas também me era proibido participar das reuniões secretas, reuniões essas que minha irmã Janette realizava quase todas as noites, antes de dormir.

Era estranho, curioso e tentador.

Iam todos para o quarto do meio e lá ficavam.

O meu quarto ficava no final do corredor o qual era mantido fechado enquanto todos estavam reunidos no quarto do meio e, por mais que eu tentasse, não conseguia saber o que se passava lá.

Até que um dia tudo mudou, já que, me foi dado “passe livre” para participar das tais reuniões.

No entanto, exatamente quando podia saber do que falavam lá, a cortina se fechou de vez. Cortina sim, porque as reuniões não eram bem reuniões, eram sessões para contar histórias que Janette criava em forma de seriado, tipo novela.

E as histórias eram contadas com direito a ruídos e sons – também inventados por ela – uma verdadeira trilha sonora igual as que hoje são criadas para os espetáculos de teatro e para o cinema. A personagem principal das histórias se chamava Negrinha Doidinha e o título do seriado ela denominou de “As perigosas Aventuras da Negrinha Doidinha”

Embora o título chame atenção, não irei alongar-me agora, mais adiante falarei sobre o assunto.

Voltemos à Lecticia e sua exclusiva dedicação ao piano.

 

PIANISTA SIM,

 

De repente, o som já não era mais o mesmo.

Antes, o som era repetitivo, agora as músicas eram bem mais agradáveis de se ouvir, de uma beleza infinita, invadiam os meus ouvidos e lá ficavam, e continuaram até hoje. Mas, nem todo som que se ouvia na casa era o do piano tocado por Lectícia.

Sim, pois enquanto ela estudava, a agitação cada vez mais se instalava na casa.

Eu lembro que, naquela época, o quarto dos fundos – tinha que cruzar o quintal para chegar à ele – estava repleto de tecidos. Duas costureiras e uma bordadeira viravam e reviravam as páginas dos figurinos em cima de uma grande mesa de corte. E, no corta daqui, corta dali as roupas iam ficando prontas ao som do piano e das máquinas de costura, claro.

Eu apurava os ouvidos e me concentrava para escutar apenas o som do piano que Lecticia tocava. Repetia dezenas de vezes os exercícios musicais e dezenas de vezes uma música suave e inquietante.  Som esse que invadia o espaço penetrando em meu corpo, em meus poros, em minha alma.

Era uma sensação boa, agradável, e que despertava meus sentidos, me fazia feliz. Um sentimento de prazer e ao mesmo tempo de desamparo.

 

Logo que as que roupas ficavam prontas eram penduradas em uma armação de madeira muito parecida com as “araras” que são usadas nos camarins dos teatros. Um tipo estranho de Varal pra roupas secas. (risos).

Um dia fui tomado de surpresa quando vi que a minha mãe e as minhas irmãs, antes das oito horas estavam todas preparadas para sair, não era costume elas saírem, muito menos, tão cedo.

Recomendações foram dadas à empregada, às costureiras e à bordadeira. Minha mãe também comunicou que estaria de volta em três horas. Para mim ela disse que ficasse quieto e obedecesse a dona Iolanda, uma das costureiras. Claro que ela disse isso porque sabia que Antônia, a empregada da casa, permitia que eu fizesse tudo que me dava vontade, até estimulava as minhas criações.  Certa vez ela disse:  “Menino, você brinca como se tivesse um  grupo  enorme de pessoas à sua volta e seus brinquedos parece que são personagens vivos, engraçado!”

 Hoje eu lembro e penso: eu brincava comigo mesmo e tudo parecia um grande palco onde minhas histórias criavam vidas, minha mente estava sempre repleta de pessoas com rosto de cadeiras, de mesas, cabides, figos, uvas e de outros tantos elementos, convivia com eles, dava-lhes nomes e destinos.

Mas, voltando à minha mãe. Assim que elas saíram e estando meus irmãos na escola, eu me esbaldei. Não perdi tempo, fui à sala do piano, dedilhei alguns tons, abri a partitura das músicas e em uma delas, com certa dificuldade consegui ler – Final do Concurso de Piano para Jovens Senhoritas. Nome: Lecticia Cabus.

Confesso que na ocasião não entendi mas, alguns dias depois ficou claro o motivo de tantos preparativos.

 

 

Da sala de piano fui até a cozinha. Ali fiquei um breve instante, depois fui ver se as uvas estavam maduras. Não estavam. Mesmo assim, colhi e comi algumas uvas verdes. Enquanto comia as uvas sentia um sabor indescritível, uma sensação de prazer tão grande que, se fossem maçãs, diria que eu estava comendo o fruto proibido. Nem mesmo a acidez deixada na boca pelas uvas verdes inibiu o meu prazer. Fui conferir a figueira e vi alguns figos maduros. Peguei um e comi, depois outro, outro e muitos outros. Parecia mel escorrendo garganta adentro e nem mesmo a voz da vizinha, Ignez, conseguiu diminuir o prazer daquela mistura de sabores. Lembro-me que ela disse: Ahê!!! – depois sua mãe diz que sou eu que ando comendo os figos!

Fingi que não escutei, gostava muito dela e das suas irmãs, Celeste e Lícia. Gostava do seu pai que era viúvo – Sr. Joaquim – e da negra que mais parecia mãe de todas as pessoas do mundo. Ela sempre iniciava as frases dizendo: Meu filho, minha filha... A voz era tão suave que jamais deixei de escutar.

Sempre que busco um tom suave para uma personagem que represento, a minha memória emotiva resgata aquela voz singular, repleta de tons que formavam as mais variadas expressões na face, dando cores e sabores as palavras –  é a voz de Baba que vem aos meus ouvidos – e a sua imagem se faz tão presente que me transporta, voz que me leva ou me traz de volta no tempo.

Cumprindo o que dissera, pouco depois das 11 horas minha mãe e as minhas cinco irmãs chegaram, todas falando ao mesmo tempo, um vozerio só, e o assunto era o mesmo – sapatos – todas elas compraram sapatos. O falatório era tanto que não tive a menor curiosidade de ver nem as formas nem as cores dos “pisantes”. (risos)

Minha mãe, como uma dona de casa exemplar foi até à copa-cozinha e perguntou à Antonia se Napoleão havia levado o almoço ao meu pai. Escutei dona Antônia dizer que sim. Só então soube que Napoleão havia estado em casa. Eu estava tão distraído comendo os figos que se alguém entrasse e levasse tudo que havia na casa eu não teria notado.

Quem consegue ver ou ouvir alguma coisa quando se come uvas azedas que ficavam adocicadas quando misturadas com os figos sabor de mel?

Naquele dia me dei conta que “se distanciar” é uma forma perfeita de “se fazer notar”.

Sim, pois todas elas me fizeram infindos agrados, minha mãe encheu as mãos de bombons e os colocou nas minhas, mal sabia que eu estava empanturrado com as uvas e os figos, de forma que corri para o meu quarto, abri a gaveta de uma cômoda e os guardei ali. Não recordo se os comi depois ou se eles lá ficaram lá, esquecidos.

Mas, voltando à Lecticia!  Ela mal chegou, tomou um banho e logo depois estava novamente ao piano.

Não perdi tempo, posicionei-me junto à porta da sala – de onde podia vê-la – e ali fiquei escutando... alguns anos depois eu soube que ela tocava “Debussy”. Fiquei lá a tarde inteira, ouvindo... que bom que naquele dia minha irmã Sônia não me deu aula, logo depois de almoçar ela deitou e dormiu.

 

O sono de Sonia

 

O adormecer de Sônia foi como um passe de mágica, o gesto do ilusionista que nos faz sentir que o tempo passou, que não existiu. O imaginário na simplicidade sofisticada de um som que pode conduzir à alegria, felicidade, amor, prazer, ou nos arrastar ao mundo das sombras, medo, vergonha, terror, remorso – o destino de todos no estalar dos dedos do ilusionista – ele, detentor da chave do poder, quiçá nos despertar ou nos fazer dormir para sempre.

Durante muitos anos uma dúvida me assalta. Quem nos adormece? Infindáveis foram as respostas mas, todas me conduziam a uma outra indagação: Quem nos desperta? Sem resposta prefiro dizer apenas que Sônia adormeceu, no entanto, enquanto ela dormia o meu tempo passado não se perdera, flutuou em torno do meu próprio tempo e ele próprio se encarregou de me trazer de volta com a memória preservada.

           "... Meus pés descalços pisavam firmes no solo procurando sentir a consistência da matéria. Percebo os sinais, através deles ouço a terra; pedregosa, pantanosa, árida, fértil, uma imensidão de areias brancas onde os coqueiros fazem morada. Ali, ardendo ao sol, suas vozes ecoam mudas – está tudo bem – parecem dizer, enquanto escondem as lágrimas no interior dos seus frutos."

 

Certamente, alguns de vocês devem estar perguntando o que isso tem a ver com teatro – “...ele se perdeu, pegou a trilha errada.”

Não, não me perdi.  Afinal o que vocês querem?

Que eu conte uma história e ao mesmo tempo desvende a origem do universo? (risos)

Tudo que posso dizer agora é que todos esses sentimentos estavam sendo gerados em mim mas, ao mesmo tempo ficavam aprisionados, contidos no meu corpo. Um corpo em formação que a cada momento recebia fiapos de luzes, fiapos que se transformavam em raízes, e foram abrindo caminhos, traçando preciosas trilhas as quais eram nutridas por uma enxurrada de informações, desordenadas, amontoadas, sem que eu soubesse como processá-las nem mesmo armazená-las.

 Talvez devesse observar mais e aprender com as laboriosas formigas, o fazem muito bem nos meses que antecedem o inverno. E é isso que farei.

Naqueles dias, intuitivamente, eu comecei a formar o banco de dados da minha memória emotiva. Uma memória que não necessita falar.

A bordadeira não falava, no entanto, foi a presença mais presente.

Aquela que devolve o passado e identifica na trilha o que esquecemos, apontando no horizonte o que está por vir.

Um dia fiquei olhando demoradamente as mãos da bordadeira que não falava e notei que ela não usava dedal.

Se por um acaso a fina ponta da agulha picava o seu dedo, sua face mudava de expressão. Certa vez, cheguei a ver lágrimas descendo-lhes dos olhos.  Bem que eu gostaria de ter perguntado qual foi a dor maior. A dor que a fazia mudar de expressão ou aquela que fez brotar lágrimas em seus olhos.

Todo este legado estava recebendo naqueles dias. Foi sonho? Magia?

Quem sabe a minha irmã Sônia nunca dormiu, nunca acordou.

Não, de forma alguma, não é sobre isto que eu quero falar. 

 

O QUE DIZER ENTÃO? 

 

Finalmente o grande dia chegou. Os quinze habitantes fixos daquela vila... hoje estou confundindo tudo, não, não é aquela vila, é aquela casa.

Finalmente o grande dia chegou, os quinze habitantes da nossa casa e os figurantes estavam em cena – o movimento era intenso – gente tomando banho, se vestindo, cuidando dos cabelos e outros preparativos próprios dos grandes espetáculos. A cena teria se transformado em um caos se não contasse com a batuta da maestrina Caffa – para os que não sabem – Caffa é a minha mãe.

 

O vai e vem, o anda-anda, o corre-corre, era tudo tão intenso que os meus pés ficavam buscando espaço para pisar no solo mas, que solo? Eu não tinha solo, era uma luta desigual. Como defender-me das idas e vindas de um monte de pés? Os meus temiam pela própria integridade física. Mal se livravam de um “pisante”  já se viam ameaçados por outro, e não adiantava dizer - ei, cuidado eu estou aqui ou, por favor pise no meu pé vizinho porque o do lado esquerdo é o meu para cenas de carinhos e afagos, o sadomasoquista é o outro, vai lá que ele gosta.

Ufa! Fui salvo. No exato momento que a inevitável pisadela estava para acontecer ecoou  o som de um apito. Todos pararam. Ordenadamente duas filas se formaram.  De um lado as meninas e do outro os meninos. Meu pai que já estava pronto a mais de duas horas levantou-se de uma cadeira conhecida como cadeira de braço onde o encosto e o assento eram de palhinha. Aquela cadeira não ficava naquele lugar, mas ele sabiamente a colocou em um canto próximo a porta de entrada, distante do trânsito intenso, e ali ficou lendo folhas e folhas de jornais. Se alguém perguntasse se ele morava naquela casa garanto que naquele dia ele não saberia responder.

Ao escutar o som do apito tranquilamente dobrou o jornal, depois elegantemente pegou a sua bengala de cabo de prata e aprumou-se.  A bengala era um objeto usado especialmente pelos senhores, ainda que não necessitassem delas, uma espécie de símbolo de comando, de austeridade e status. No teatro é um elemento de composição externa da personagem. Saber usá-la é uma arte e em raros casos uma virtuosidade, Fred Astaire que o diga.

 

Mas, voltemos à Lecticia que estava se arrumando na sala que dava acesso ao quarto dos meus pais.

Depois de um silêncio de longos 10 segundos onde todos os olhares se voltavam para a porta, eis que surge ela, conduzida por Olímpia, sua professora de piano.

Tal era a concentração das duas que pareciam pessoas de outro mundo. Era engraçado ver.

Nada falaram, andaram em direção à porta de entrada da casa e eu as perdi de vista.

Soube depois que um motorista de carro de aluguel estava de prontidão esperando por elas. Sem ângulo para ver a saída das duas, minha mente viajou e todos os acontecimentos dos últimos dias passaram como um filme, colorido.

As imagens anteriores se misturavam com as imagens daquele momento.  Lecticia com um vestido confeccionado com o tecido de cor pastel - aquele que alguém tocou com as mãos suadas e que deu muito trabalho para limpar –  ao lado de sapatos, tecidos, linhas, agulhas, máquina de costura –  estavam  todos ali, disputando a minha mente ao lado das palavras que bailavam e ecoavam em ritmos e cores: - Concerto, tempo musical, exercícios para aquecimento dos dedos, bordados, linha, agulha; junto à tudo isso lá estava também madama Belacolar – a famosa chapeleira – mostrando os modelos dos chapéus e os arranjos para cabeça.

E eu que havia esquecido de uma tarde, onde esteve lá em casa para levar adereços. Faziam parte dos figurinos. Lembro que me dera um chocolate.

           “...O gosto volta à minha boca misturado com o sabor das uvas verdes e dos figos maduros.”

 

Eram muitas imagens, a ponto de não mais identificá-las, uma mistura de êxtase e orgasmos, juro que foi o meu primeiro orgasmo, uma mistura de ódio e de prazer.

A indiferença à minha presença, as imagens descompassadas em minha mente, tudo isso provocara um calor vulcânico que me levou à romper a realidade dando lugar à uma doce loucura, um a um, objetos, pessoas, tudo e todos se tornaram insuportáveis aos olhos, e eu, calmamente implodia a cena.

Um grito seco, forte, agudo e ao mesmo tempo grave, de alcance imensurável, sem identificação, um grito que hoje eu o identifico como o “Grito Expressionista”, muitos anos depois o meu professor Camile Demange falou sobre “O Grito” no Teatro Expressionista Alemão.

Todo este legado eu recebia naqueles dias de sonho.  Teria sido um sonho? Realidade? Magia?

Quem sabe a minha irmã Sônia nunca dormiu, nunca acordou.

Acho que estou a repetir-me... (risos)

Quem sabe, quem sabe, eu continue a contar contos!

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